quinta-feira, 10 de junho de 2021

A Certeza da Salvação em Jacó Armínio (Part 1)



Antes de apresentarmos a Teologia de Armínio concernente a certeza da Salvação, é necessário fazermos referência aos fatos que o levaram a formulá-la. Armínio, enquanto exercia o seu ministério em Amsterdã, observou dois problemas extremamente graves que estavam assolando as igrejas reformadas. O primeiro problema que fora notado por Armínio, era de que muitas pessoas não possuíam confiança em sua eleição, o segundo, era diametralmente oposto ao primeiro, muitas pessoas possuíam uma exagerada confiança em sua salvação. Visto a tamanha gravidade desses dois pontos de vistas concernente a certeza ou convicção da salvação, Armínio se referia a eles como “dois dardos inflamados de satanás”, as “duas pestes da religião das almas” e “os dois grandes males a serem evitados em toda a religião”.


Desperatio


O primeiro problema notado por Armínio, e que vale ressaltar, era um problema pastoral contínuo nas igrejas reformadas do período pós-reforma é relatado da seguinte maneira por Stanglin[1]:

“Em uma carta a seu amigo Johannes Uytenbogaert, Armínio narra sua experiência enquanto ministrava aos membros da igreja em Amsterdã que estavam sofrendo da praga mortal de 1602. Armínio relembra que dois cristãos, um homem e uma mulher, que estavam extremamente doentes, mas que não conheciam um ao outro e que ambos não conseguiam sentir em seus corações “a certeza (certitudinem) da remissão de pecados”. Eles temiam por sua salvação, não possuindo aquele conforto divino que eles desejavam na vida e morte. Ambos foram vencidos pela mágoa, não que eles estivessem desesperados ao ponto de perder sua fé, mas eles não sentiam a certeza necessária para sua salvação”

Não obstante, Armínio os descreveu como verdadeiros crentes, e que devido a isso, principalmente em tal momento, deveriam mais do que qualquer outro tipo de pessoa, estar descansados convictos de sua salvação; mas se encontravam em um estado que ele denominava de wanhope (Holandês) ou desperatio (Latim), ou seja, “desespero” ou “ausência de esperança”. No momento que eles mais necessitavam da certeza, eles não conseguiam encontrá-la. Tal estado “não apenas significa uma falta de esperança, mas também a opinião de que a coisa desejada – neste caso, salvação – é impossível de se obter”.


Securitas


Quanto ao segundo problema Percebido por Armínio:

“Ele recordou vezes quando ele admoestou cristãos a abandonarem seus caminhos pecaminosos e se arrependerem, somente para ser lembrado por seus párocos de que “não era necessário que eles se preocupassem muito sobre a questão ou que profundamente se lamentassem sobre o pecado”. Afinal de contas, o pecado sempre fez parte da vida cristã, mesmo para Paulo. [...] Por todas estas razões, parece que a pessoa não precisaria se preocupar muito uma vez que Deus seria gracioso. Como muitos outros cristãos antes e após ele, tal atitude descuidada frustrou Armínio durante seu tempo como pastor e o preocupou nos anos subsequentes”.

A esse estado Armínio denominava de Sorgloosheyt (Holandês) ou Securitas (Latim). Ambas as palavras significam, “segurança” ou “Ausência de cuidado”. É importante ressaltar que a palavra "segurança" em Latim como na tradição Cristã comumente possuía conotações negativas como por exemplo: negligência, presunção e arrogância; diferentemente dos dias atuais, que significa algo bom - exclusivamente. Isso se deve ao fato de que a expressão passou a ser usada pelos teólogos Reformados, cada vez mais, para indicar uma virtude positiva, não obstante, segundo Stanglin, tal palavra significa literalmente “falta de cuidado, incluindo a ideia de negligenciar algo que realmente merece atenção [...] Significa ser indiferente quando se deve prestar atenção. Significa ser complacente e dormir quando se deveria estar vigilante e alerta”. Ele assevera:

“Tertuliano, João Crisóstomo, Jerônimo, Agostinho, Leão, o Grande, Gregório, o Grande, Isidoro de Sevilha, Rábano Mauro, Bernardo de Claraval, Tomás Aquino, Gabriel Biel, Desidério Erasmo e Lutero advertiram contra a “segurança”. De fato, até mesmo os proponentes da eleição incondicional advertiram contra a “segurança”. Agostinho adverte novos crentes que seu batismo significa remissão de pecado, não permissão para pecar. Para Gregório, o sentimento de “segurança” transgredi o limite do que é apropriado”.

As Causas dos Problemas


Para Armínio, a causa do desperatio era consequência direta de três doutrinas reformadas concernente a salvação. 

  • Em Primeiro lugar, a fé salvadora, na perspectiva reforma, inclui não apenas conhecimento e concordância, mas também uma certeza confiante. Não apenas isso, as vezes a certeza era vista como sinônimo de fé.

  • Em segundo lugar, a doutrina da fé temporária. Calvino em suas instituas defendeu que uma pessoa poderia pensar possuir uma verdadeira fé e até mesmo poderia parecer aos outros ter fé, quando na realidade era apenas uma fé temporária concedida por Deus “sem a intenção de ser perseverante, mas seria retirada por ele”. 

  • Terceiro, a doutrina da condenação/reprovação incondicional. Segundo Stanglin, “A doutrina reformada da eleição incondicional reivindica que Deus elege a quem ele quer salvar, baseado não nas boas obras de tais pessoas, ou na fé prevista, ou mesmo no livre assentimento de tais pessoas. A consequência necessária dessa eleição é que Deus incondicionalmente reprova, ou talvez “passa por cima”, do restante da humanidade, o resultado da qual é a condenação. A única maneira para escapar da condenação é ser escolhido por Deus”. Conforme Armínio argumenta, sabendo que a eleição é incondicional, não existe absolutamente nada que o réprobo possa realizar para se encontrar em um relacionamento salvo com um Deus que não os elegeu.

Quanto as causas do Securitas, Armínio também compreendia que três eram os fatores responsáveis por tal estado.

  • Em primeiro lugar, a Santificação na perspectiva reformada, baseada principalmente em uma interpretação de Romanos 7, era compreendida de forma que o progresso era mínimo na vida de um Cristão, se assemelhava a passos como de bebês. Embora o Cristão regenerado, com auxílio do Espirito santo, deva e é capaz de dar passos para a santificação.

  • Em segundo Lugar, a Eleição Incondicional. “Afinal de contas, se alguém é eleito desde a eternidade, e se essa eleição não possui condição alguma do lado humano, não existe nada que possa ser feito para separar o eleito do amor de Cristo. Se alguém estiver confiante em sua eleição, então a salvação está segura. Ainda mais, se é errado duvidar da eleição e é uma virtude ser confiante, e se a certeza é um componente da fé, então pode ser ainda mais virtuoso ser mais confiante".

  • Por fim, “Se a pessoa se torna parte do povo do pacto, o povo escolhido por Deus, pela graça irresistível somente em separado de boas obras, então quantidade alguma de más obras ou ausência de boas obras pode anular tal eleição e pacto”. Essa é a doutrina reformada da perseverança dos santos, que é uma consequência natural da eleição incondicional.

Na Compreensão de Armínio, o estado de Securitas era muito mais perigoso do que problema do desespero[2], devido a razão de que a pessoa em desespero ao menos concorda que há um problema e em virtude disso, pode tentar buscar ajuda Pastoral, por exemplo. Em contra partida, “a pessoa segura, por definição, nem sequer admite um problema”. Sem contar o temor que Armínio possuía ao lidar com um crente em "desespero", pois Alguém liberto das corretes do desespero, poderia cair subsequentemente para o outro lado, em segurança e negligência. A segurança e desespero era visto por Armínio como dois extremos do mesmo espectro. Contudo, o meio entre esses extremos, “é a virtude da verdadeira esperança que produz certeza ou convicção”.











Notas
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[1] Para um maior aprofudanemto recomendo as obras de Keith D. Stanglin "Perseverança dos Santos" e "Jaco Armínio; Teólogo da Graça", ambas publicadas pela Editora Reflexão.
[2] "Deve ser enfatizado que a atitude de pensar em alguém como desesperançosamente réprobo ou, na outra direção, vivendo seguramente em pecado enquanto a graça abunda, não é o objetivo pastoral da teologia reformada. Sempre é possível que pessoas pecaminosas possam pegar uma sã doutrina e transformá-la em pedra de tropeço. Mas Armínio falava sério acerca destas atitudes como sendo justas implicações da soteriologia reformada. Apesar de os reformados não terem objetivado tais resultados, contudo, eles são resultados lógicos e, tendo por base seu ministério, resultados reais. E se estas consequências são validamente inferidas, então há algo errado com a teologia. Conforme o próprio Armínio dizia: “Nada pode ser verdadeiro a partir do qual uma falsidade pode ser, por boa consequência, concluída" (Stanglin; Perserverança do Santos. Ed; Reflexão.)

sexta-feira, 30 de abril de 2021

A Doutrina da Iminência do Arrebatamento


 Conceituação

É Importante, já de imediato, apresentar ao leitor o significado da palavra Iminência. Em primeiro lugar, a mesma não deve ser confundida com o termo "imanente", pois, dentro de uma linguagem teológica, tal termo se refere a ideia de que "Deus não está apenas transcendente, muito acima de nós, mas que está sempre conosco e ativo em nosso favor"[1]. Em segundo lugar, a mesma palavra não deve ser confundida com "eminente", pois é "reservado normalmente para reis e pessoas de distinção notável"[2]. A palavra eminente é um título de honra. 
O termo "iminência" é usado dentro de um contexto escatológico "para descrever a vinda de Jesus para a igreja, a experiência do arrebatamento e para declarar que esse evento é o próximo no programa profético de Deus"[3]. Gerald B. Stanton acentua que "o pensamento primário expresso pela palavra "iminente" é de algo importante que está prestes a acontecer e poderia acontecer em breve. Embora esse evento não precise ser imediato, nem necessariamente muito em breve, é o próximo evento e pode acontecer a qualquer momento"[4]. Observe que Stanton frisa que iminência não é sinônimo de imediatismo. Iminência é uma coisa, imediatismo é outra completamente distinta. Levando em consideração esta verdade Pentecost argumenta: "há uma distinção a ser observada entre uma volta iminente de Cristo e uma volta imediata de Cristo. Em nenhum lugar as Escrituras ensinam que sua volta seria imediata, mas ensinam com total coerência que tal volta poderia ser esperada a qualquer momento[5].
Se faz necessário realçar a diferença entre o termo impendente e iminência. O primeiro está ligado a um evento potencialmente perigoso ou negativo, "mas se um evento é carregado de esperança e alegre expectativa, nós o expressamos com a ideia de "iminência" e com o adjetivo de "iminente". Entre os crentes, essas palavras normalmente estão relacionadas à possível breve vinda de nosso Senhor Jesus Cristo para levar a igreja no acontecimento alegre e monumental chamado de arrebatamento.

O cerne da Doutrina


A doutrina da Iminência envolve três verdades. Em primeiro lugar, "embora ninguém saiba a hora da volta de Cristo, Ele pode voltar a qualquer momento e é possível que Ele volte hoje; em segundo lugar, "o arrebatamento é um evento sem sinais, não será anunciado e será inesperado para a maioria das pessoas"; por último, "mais nenhum evento claramente profetizado precisa ocorrer antes do arrebatamento, pois isso seria datar a hora da vinda de Cristo".
Quando entendemos todas essas verdades, fica nítido de que é impossível alguém crer na iminência do arrebatamento e ao mesmo tempo viver de estipulações ou marcações de datas de quando este evento irá ocorrer. Este comportamento não faz jus a um entendimento futurista concernente as profecias bíblicas, pois "de acordo com o futurismo pré-tribulacional a data do arrebatamento não é ligada, de qualquer maneira a qualquer evento terreno que possa servir como base para a datação"[6]. Portanto, o arrebatamento é um evento/acontecimento sem sinais. Devido a tal fato, Thomas Ice escreve:

 "Os que são futuristas pré-tribulacionais tem que abandonar o método futurista para especularem sobre uma data para o arrebatamento. O sistema futurista impede a datação. É por isso que futuristas que tentam marcar a data se voltam para algum tipo de historicismo que iguala a presente era à tribulação. Se, porém, o indivíduo está trabalhando debaixo da lógica da abordagem historicista, o historicismo não sustenta a doutrina do arrebatamento pré-tribulacional. Ao operar com base em princípios historicistas, o futurista solapa a base do arrebatamento pré-tribulacional que está tentando datar"[7].

Essa é uma das principais diferenças entre o Arrebatamento da Igreja e a Segunda Vinda de Cristo[8], pois, conforme frisa Rhon Rodes, "O arrebatamento é um acontecimento que não requer sinal de alerta prévio  totalmente contrário da Segunda Vinda de Cristo, a qual será precedida de muitos eventos durante os sete anos da Tribulação (Ver Ap 4-18)[9]. No seu livro "Manual de Escatologia", Pentecost argumenta: 

"Muitos sinais foram dados à nação de Israel, os quais precederiam a segunda vinda, a fim de que a nação vivesse em expectativa quando Sua volta se aproximasse. Apesar de Israel não saber o dia nem a hora em que o Senhor voltaria, saberia que sua redenção se aproximava pelo cumprimento desses sinais. Tais sinais nunca foram dados à igreja. A igreja tem a ordem de viver à luz da vinda iminente do Senhor para transladá-la à Sua presença (Jo 14.2,3; At 1.11; 1 Co 15.51,52; Fp 3.20; Cl 3.4; l Ts 1.10; l Tm 6.14; Tg 5.8; 2 Pe 3.3,4). Passagens como 1 Tessalonicenses 5.6, Tito 2.13 e Apocalipse 3.3 alertam o crente a aguardar o próprio Senhor, não aguardar sinais que antecederiam Seu retorno. É verdade que os acontecimentos da septuagésima semana lançarão um prenúncio antes do arrebatamento, mas a atenção do crente deve ser sempre dirigida para Cristo, nunca aos presságios"[10].


Os eventos Atuais


Ao leitor, muito do que fora discutido e exposto até o prezado momento quanto a doutrina da iminência do arrebatamento pode ser algo "novo". Isso se dá ao fato de que por muitos anos Mateus 24-25 – principalmente  e outras passagens foram interpretadas como tendo um conteúdo profético que necessariamente precederia o arrebatamento da Igreja, entretanto, o "sermão profético" é dirigido aos discípulos de Cristo após os mesmos fazerem três perguntas centradas na Tribulação, logo, conforme Staton, e outros inúmeros teólogos pré-tribulacionistas, "A passagem,[...] é judaica e se relaciona a um contexto muito judaico. Por essa razão, nem a igreja nem o arrebatamento são mencionados [..][11]. Contudo, como ficaria o nosso entendimento concernente ao período presente? Em primeiro lugar, um bom intérprete deve manter o futuro no futuro. Devemos ter o cuidado para jamais misturar o futuro com o presente. Não obstante, obviamente que os eventos atuais possuem uma significância futura e sem dúvidas alguma se relacionam. A grande questão é esta: "qual seria uma visão coerente a respeito deste assunto"?!
De acordo com Thomas Ice, devemos afirmar que todo o cenário está sendo preparado para o grandioso programa escatológico do nosso Deus. A bíblia apresenta inúmeros eventos, atos, e nações que estão/estarão envolvidas com a "grande tribulação", e, com base nisso, podemos perceber claramente a "preparação divina para os setes anos finais das setentas semanas de Daniel". John F. Walvoord comenta:

"Não há base Bíblica para que se marquem datas para a volta do Senhor ou o fim do mundo... À medida que os estudiosos da Bíblia observam princípios corretos de interpretação, estão ficando cada vez mais cônscios de uma notável correspondência entre a tendência obvia dos eventos mundiais e o que a Bíblia predisse há séculos" (Armageddon, oil and the Middle East Crisis).

Portanto, "no cenário mundial contemporâneo há muitas indicações que levam a conclusão de que o fim desta era pode logo vir sobre nós. [...] nunca antes na história do mundo houve tal confluência de evidências significativas da preparação do fim" (John F. Walvoord; Israel in Prophecy). Isto posto, Thomas Ice Conclui: "alguns desdobramentos históricos que serve como preparação do cenário já estão lançando sua sombra sobre nossos dias. Incluem a apostasia religiosa, os preparativos para o Império Romano revivido na Europa, o Retorno de Israel à sua terra, o renascimento de antigos Inimigos de Israel como Iraque (a Babilônia) e o surgimento da Rússia como poder militar (a invasão de Gogue e Magogue)  todos eles como preparativos para eventos da Tribulação. Antes, porém, que a cortina seja erguida, a igreja subirá aos ares no arrebatamento"[12].










Notas
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[1] Ice, Thomas; Danny, Timothy (Org); Quando a Trombeta Soar. pág, 214.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Pentecost, J. Dwight; Manual de Escatologia. pág, 234.
[6] Ice, Thomas; Danny, Timothy (Org); Quando a Trombeta Soar. pág, 18.
[7] Ibid., pág, 19.
[8] Entre os defensores do pré-tribulacionismo existem divergências quanto a relação do arrebatamento da igreja e a segunda vinda de Cristo. Alguns entendem o arrebatamento da Igreja como uma "primeira fase" do retorno de Cristo; outros, entendem como dois eventos completamente distintos. Particularmente, compreendo o arrebatamento como um evento totalmente distinto da segunda vinda de Cristo, assim  sendo, faço coro com o segundo grupo. Em sua obra, Pentecost faz referência à 17 distinções entre o arrebatamento e a segunda vinda de Cristo.  Ele conclui escrevendo: "Essas e outras contraposições que poderiam ser apresentadas apoiam a alegação de que se trata de dois planos diferentes que não podem ser unificados num só." (Pentecost, J. Dwight; Manual de Escatologia. pág, 268).
[9] Rhodes, Ron; A Cronologia do Fim dos Tempos. pág, 64.
[10] Pentecost, J. Dwight; Manual de Escatologia. pág, 261-262.
[11] Ice, Thomas; Danny, Timothy (Org); Quando a Trombeta Soar. pág, 239.
[12] Ibid., 25.





Dedicatória:
Ao meu amigo e irmão, Luiz Antônio. 

sábado, 24 de abril de 2021

Fé e Obras na Teologia de Tiago


O Dilema

O Principal problema que pode surgir aos nos depararmos com a Epístola de Tiago, é pensarmos que o mesmo está de alguma forma contradizendo o Apóstolo Paulo ou até mesmo o corrigindo concernente a sua compreensão quanto a justificação, já que o Ele - Paulo -  repetidamente afirmava que esta se dava por meio da fé e não por obras. Não obstante, Aqueles que afirmam que na compreensão de Tiago a fé é algo secundário, de menor importância, ou até mesmo subserviente as obras, não percebem que para Tiago, a vida Cristã pode ser resumida em termos de fé (Tg 1.3; 2.1,5), não apenas isso, a fé é algo sine qua non para nossa relação contínua com Deus e se manifesta em oração (Tg 1.6; 5.15). Fica evidente que para o autor, "a vida Cristã começa com um novo nascimento, tornando-se então uma vida contínua de fé".  

Em Defesa de uma Fé Verdadeira

Tiago procura ressaltar ao leitor de que existe uma impossibilidade da existência de uma fé verdadeira sem obras, assim como palavras sem ações. Tiago faz uso de dois exemplo para ilustrar o seu entendimento sobre uma genuína fé; "Tiago Constrói um argumento em favor das obras que não é baseado simplesmente na lógica, mas apoiado na invocação dos exemplos Bíblicos de Abraão e Raabe (Ibid.). Ela - a fé - foi expressada em Abraão que estava disposto a oferecer seu filho a Deus (Tg 2.21) e em Raabe que protegeu os espiões e os livrou de serem presos e consequentemente mortos (Tg 2.25)[1]. Tiago ao longo de sua epístola é insistente quanto a necessidade da fé ser expressa em obras (Tg 2.1-4), consequentemente, com a mesma ênfase, Tiago enfatiza a inutilidade de uma fé sem obras (Tg 2.14-26). Portanto, deve ficar evidente ao leitor que o autor defende a ideia de que a fé verdadeira resulta em obras que a expressa. Entretanto, três temas se relacionam com o argumento de Tiago. Sendo eles:

  • Em primeiro lugar, a obediência deve acompanhar, necessariamente, o ouvir a palavra (Tiago 1.22)
  • Em segundo lugar, Palavras de nada servem sem ações em um contexto na qual se faz de suma importância expressar ambas (Tg 2.15-16)
  • Por fim, a fé desacompanhada de obras é morta (Tg 2.14-17)


Uma Resposta Merecida

Tiago ele está se dirigindo não a Paulo, mas a seus "seguidores" e a todo aquele que possuísse uma visão incorreta quanto a fé. Marshall realça justamente isso ao escrever "Tiago está atacando uma falsa visão da fé, que a entende como pouco mais que uma crença ortodoxa que não muda o estilo de vida de uma pessoa"[2]. Se levarmos em consideração o fato de que ser cristão é ser um crente, Tiago corrige a ideia errônea de que a crença é apenas e exclusivamente "uma mera questão intelectual e que não diz respeito ao comportamento"[3]. Se por um lado o Apóstolo Paulo contestava o ensinamento de que a lei judaica, principalmente a circuncisão e todos os seus aspectos ritualísticos era imprescindível para a Justificação, do mesmo modo, Tiago confrontava aqueles que acreditavam que possuindo um fé em Deus, não havia necessidade de ser expressar o amor, curiosamente, a necessidade de tal demonstração é o mesmo entendimento de Paulo: "Pois, quando estamos unidos com Cristo Jesus, não faz diferença nenhuma estar ou não estar circuncidado. O que importa é a fé que age por meio do amor" (Gálatas 5:6 [NTLH]). Algo que se faz necessário pontuar, é que Tiago em nenhum momento prioriza as obras em detrimento a fé, algo que Paulo combateu em Romanos e em Gálatas. As "obras" em Tiago significa algo totalmente diferente, "Tiago está falando do tipo de boas obras que indica a mudança de caráter que deve acompanhar a conversão cristã"[4]. Ao passo que "obras" em Paulo se refere/significa "obras da lei", pois o que ele combatia era o entendimento de que se fazia necessário as "obras" da lei, em vez da fé ou em complemento a ela, para a justificação".

Conclusão

Não precisamos ver Tiago e Paulo como "inimigos Teológicos", como os veem a maioria dos teólogos alemães, pois, conforme defende Marshall, "é bastante provável que alguns dos ouvintes de Paulo tenham tornado isoladamente  sua insistência na fé como uma desculpa para a falta de esforço em fazer boas ações"[5]. Para Tiago, esta compreensão seria uma "tipo defeituoso de fé" na qual ele de hipótese alguma poderia concordar. Portanto, Tiago e Paulo estão mais lado a lado do que se possa imaginar, defendendo o evangelho de falsos ensinamentos, deturpações e compreensões incorretas.







Notas
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[1] "embora a ilustração de Tiago 2:15-16 trate da diferença entre palavras e obras de amor como um paralelo à diferença entre fé sem obras e fé com obras, ela é sem dúvida uma ilustração altamente apropriada, uma vez que Tiago via as obras de amor como opostas às exigências rituais e como uma das expressões necessárias da verdadeira fé" (Marshall, I Howard; Teologia do Novo Testamento; Ed. Vida Nova; P. 548".
[2] Ibid.
[3] Ibid., p. 591.
[4] Ibid., p. 593.
[5] Ibid.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Uma Justificação Cristã da Filosofia (Part 2)



A Filosofia e sua relação com a disciplina do Estudo

 Aqueles que experimentam a disciplina do estudo, vivem experiências que desenvolvem algumas habilidades decorrentes desse hábito, como por exemplo:

  • Enquadrar um tema
  • Resolver problemas
  • Aprender a pesar evidências e eliminar os fatores irrelevantes
  • Aperfeiçoar a capacidade de observar as distinções importantes em vez de confundi-las

Além disso, a disciplina do Estudo também auxilia no desenvolvimento de certas virtudes e valores: 

  • O desejo pela verdade
  • A honestidade com os dados
  • A abertura à crítica
  • A auto reflexão
  • A habilidade para se relacionar não defensivamente com aqueles que são de opinião contrária.

Levando em consideração tudo o que fora dito, o estudo em si mesmo é uma disciplina espiritual, e o simples ato de estudar pode mudar o eu. Obviamente que a disciplina do estudo não é exclusividade da Filosofia, contudo, conforme escreve Willian L. Craig, “ A filosofia está entre os mais dos rigorosos Campos do conhecimento, e a sua abordagem e conteúdo são tão centrais a vida, tão próximos a religião e fundamentalmente a outros Campos de investigação, que a disciplina do estudo filosófico pode ajudar o indivíduo que busca a verdade em qualquer outra área da vida ou da pesquisa Universitária”, portanto, a filosofia poderá facilitar a disciplina espiritual do estudo.


A filosofia e a Integração

 

Conforme conceitua Willian L Craig, integrar significa “misturar ou formar um todo”. A disciplina da filosofia é absolutamente essencial para a tarefa da integração. É importante frisarmos que a integração ocorre justamente “quando as convicções teológicas do indivíduo, principalmente baseadas nas Escrituras, estão misturadas e unidas a proposições julgadas como racionais por outras fontes, dentro de uma cosmovisão coerente e intelectualmente adequada”. Atualmente, entre muitos cristãos, a filosofia é vista com desdém e preconceito, fora o fato de muitos a terem como intrinsicamente hostil a fé cristã; entretanto, grandes homens na história da Igreja a tinha por primazia, como por exemplo: Justino Mártir, Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, Calvino, Armínio, Jonathan Edwards, John Wesley, Francis Schaeffer, Carl Henry etc. Curioso é notar que William Wilberforce, homem de profunda devoção a Deus e de extrema Paixão pelo ministério prático, considerava o valor da filosofia e da apologética até mesmo para o ensino das Crianças na Igreja: “Numa idade em que sobra infidelidade, observamos os crentes instruindo suas crianças cuidadosamente nos princípios da fé que eles professam? Ou suprimindo suas crianças de argumentos para a defesa daquela fé?”. De acordo com Willian L. Craig, a necessidade da integração ocorre ao menos de três modos:

“Em primeiro lugar, a comunidade cristã precisa ir a todas as áreas do conhecimento para formar uma cosmovisão Cristã integrada e consistente com as escrituras. Segundo, uma pessoa atinge a maturidade à medida que se torna um ser integrado, não fragmentado, e uma das maneiras de se tornar uma pessoa integrada é possuir os vários aspectos da vida intelectual harmonizado[...]. Por fim, quando o Evangelho se confronta com uma nova cultura, a teologia Cristã deve se relacionar com ela de tal maneira que seja, ao mesmo tempo, sensível à cultura e fiel as Escrituras. Essa tarefa incluirá questões de valor, conhecimento e formas de pensar, e tais matérias envolvem essencialmente o esclarecimento e o comentário filosóficos” 

Essas são algumas das razões pelas quais a Igreja sempre considerou a filosofia necessária; C.S Lewis argumentou que não estar apto para encontrar o inimigo no terreno dele era “ser ignorante e ingênuo”, e tal deficiência geraria problemas práticos, pois, segundo ele, “seria jogar ao chão nossas armas e atrair nossos irmãos iletrados que não tem, abaixo de Deus, qualquer defesa contra os ataques intelectuais do pagão, exceto nós. A boa filosofia deve existir, se não por outra razão, porque a filosofia ruim precisa ser contestada”.

 

A filosofia e a Comunidade Cristã

 

Na obra, Kingdom and Community: The Social World of Early, John G. Gager afirmou que a presença dos Filósofos e Apologistas dentro da Igreja teve uma grande parcela na elevação da autoconfiança da comunidade cristã, pois a Igreja primitiva sofreu com o preconceito intelectual e cultural por parte dos Romanos e Gregos. Tal preconceito gerou alguns problemas quanto a coesão interna da Igreja e por incrível que se possa parecer, a coragem para evangelizar os incrédulos. E foram justamente estes homens que mostraram que a comunidade cristã era tão intelectual e culturalmente rica quanto a cultura pagã[1]. Logo, a disciplina da filosofia pode elevar a ousadia e a auto-imagem da comunidade cristã. Willian L. Craig salienta:

“É sabido que um grupo, especialmente um grupo minoritário, será vigoroso e ativo somente se estiver de bem consigo mesmo quando se comparar os de Fora. Além disso, haverá mais tolerância em vista das Diferenças internas do grupo e, assim, mais Harmonia, sempre que a comunidade se sentir confortável em relação aos outros [...] Devido a própria natureza da filosofia – suas áreas de estudo, sua importância em Responder questões fundamentais, as quais ela levanta e responde, e sua relação com a teologia –, o potencial dessa disciplina para aumentar a auto-estima da comunidade crente é enorme”.

Portanto, é nítido que historicamente a filosofia tem sido a principal disciplina a auxiliar a igreja na sua relação intelectual e cultural com os incrédulos, não necessariamente para mudar a imagem dos últimos em relação aos primeiros, mas que essa imagem não seja interiorizada por eles. 

"Se os apologistas persuadiram ou não os críticos pagãos a rever sua visão a respeito dos crentes como tolos analfabetos, o certo é que eles tiveram sucesso em fazer incidir sobre o grupo como um todo uma imagem favorável de si mesmo como a corporificação da verdadeira sabedoria e devoção - John G. Gager"

 

 





 Nota
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[1] A obra, “Patrística; Padres Apologistas, Paulos.”, evidencia esse fato.

 




Dedicatória

Dedico esta série a alguns amigos meus - preservarei seus nomes por puro constrangimento pessoal - que sendo ignaros desprezam a filosofia. 

 

 

 

 

segunda-feira, 29 de março de 2021

Dispensacionalismo; Origem, Propagação e Variações


 

O Dispensacionalismo é um sistema teológico pós-Reforma, embora muitas de suas ideias estejam ligadas com a igreja primitiva, o Dispensacionalismo é uma teologia relativamente nova, começando a ser sistematizada em meados do século 19. Por incrível que se possa imaginar, a teologia da Aliança se assemelha em tal aspecto, já que a mesma começou a tomar forma no século 16. Não obstante, Sabendo que o Dispensacionalismo é um sistema teológico que oferece explicações detalhadas sobre Eclesiologia e Escatologia[1], “Algumas ideias Chaves associadas ao dispensacionalismo, tais como pré-milenismo, a esperança para uma restauração nacional para Israel e mesmo o pré-tribulacionismo, também foram mantidas em séculos anteriores. O surgimento do dispensacionalismo está inserido em um contexto de histórico-Teológico de grande expectativa em relação à nação de Israel, que até mesmo teólogos estavam promovendo". William C Watson, na sua obra, “Dispensacionalism before Darby”, conforme escreve Vlach: “Documenta de maneira conclusiva uma forte esperança Apocalíptica, similar ao dispensacionalismo, que existia entre importantes teólogos Ingleses no século 17 e 18”.


 J.N.Darby e o Surgimento do Dispensacionalismo


Mesmo não sendo o primeiro a defender muitas das ideias que ele promoveu, Darby, um dos ministros do Irmãos de Plymouth, é considerado o “Pai do Dispensacionalismo”. Enquanto esteve no Trinity College, em Dublin (1819), baseado em seu estudo de Isaías 32, Darby começou a crer numa futura salvação e restauração da nação de Israel; “Darby concluiu que Israel, numa futura dispensação, usufruiria de bençãos terrenas que seriam diferentes das bençãos celestiais que a igreja experimentaria.  Ele observou uma clara diferença entre Israel e a igreja. Darby também passou a crer em um arrebatamento da igreja "a qualquer momento", que seria seguido pela 70ª semana de Daniel, quando Israel novamente estaria no estágio central do plano de Deus. Darby cria que após esse período haveria o reino milenar, quando Deus cumprirá suas promessas incondicionais com Israel". Darby, em seu próprio testemunho, afirmou que a sua teologia dispensacionalista fora totalmente formada em 1833. Contudo, Paul Enns, em sua obra, “The moody Handbook of theology”, escreveu que “Darby não adiantou o esquema do dispensacionalismo em nada mais do que cada dispensação faz, colocando o homem sob algumas condições; o homem tem alguma responsabilidade diante de Deus. Darby Também observou que cada dispensação combina em fracasso”; e, portanto, essas seriam as verdadeiras contribuições de Darby ao “sistema dispensacionalista” sem contar o fato dele identificar sete destas dispensações.


 A Propagação do Dispensacionalismo como um Sistema Teológico 


O Dispensacionalismo se popularizou devido a no mínimo quatro razões, sendo elas:

  1.  A influência exercida pelos irmãos de Plymouth
  2.  As conferências Bíblicas nos Estados Unidos
  3.  Bíblia de Estudo Scofield
  4.  Aberturas de Seminários 

A influência exercida pelos irmãos de Plymouth

Após Darby, sendo um ministro dos Irmãos de Plymouth, sistematizar o dispensacionalismo, tal teologia tomou forma nos Irmãos no início do século 19, na Grã-Bretanha. E a todo historiador do Cristianismo, é inegável o fato que os Irmãos exerceram uma grande influência no protestantismo evangélico, sobretudo, em vários ministros nos E.U.A, como por exemplo: D. L. Moody, James Brookes, J.R Graves, A. J. Gordon e C. I. Scofield. 

As conferências Bíblicas nos Estados Unidos

No ano de 1870 se deu várias conferências Bíblicas nos E.U.A e tais conferências, mesmo não sendo realizadas para promover o dispensacionalismo, ajudaram em sua propagação. As conferências do Niágara (1870 - início de 1900) é um grande exemplo disso, pois, devido ao fato do dispensacionalismo ter sido por várias vezes discutido ali, muitos dos participantes passaram a ter contado com a Teologia dispensacionalista pela primeira vez. Por outro lado, as Conferências Bíblicas e proféticas americanas (1978-1914), promoveram a teologia do dispensacionalismo. As conferências resultaram na criação de vários institutos que ensinavam a teologia dispensacionalista, sendo alguns deles: The Nyack Bible Institue (1882), The Boston Missionary Training School (1889) e o The Moody Biblie Institute (1889).

Bíblia de Estudo Scofield 

Scofield, conforme supracitado, teve influências dos Irmãos Plymouth, e além disso, ele foi um dos participantes da conferência do Niágara. E após tal conferência, o mesmo produziu a Bíblia de Estudo de Scofield em 1909. Comentando sobre, Vlach Escreve: “Essa Bíblia de referência tornou-se um significativo distribuidor da teologia dispensacionalista e colocou uma Bíblia com notas de especialistas nas mãos de muitos. Até mesmo os críticos do dispensacionalismo ainda se referem a Bíblia de Estudo Scofield como o portador padrão das crenças dispensacionalistas”. Curioso é notar que após 35 anos do seu lançamento, a Bíblia de Estudo Scofield já tinha ultrapassado a marca de duas milhões de cópias vendidas.

Aberturas de Seminários

Logo Após o término da Primeira Guerra Mundial, várias escolas Bíblicas dispensacionalistas foram fundadas, sendo lideradas por um dos seminários teológicos mais conhecido no mundo atualmente, o Dallas Theological Seminary (1924). E neste período o dispensacionalismo foi promovido em moldes mais acadêmicos e formais.


 O Dispensacionalismo Hoje

 

Algo que torna o dispensacionalismo tão distinto, é a razão de tal sistema não possuir um credo ou confissão que congele o seu desenvolvimento ao longo da história. Em sua Obra, “Dispensacionalismo Progressivo”, acertadamente Blaising realçou que “o dispensacionalismo não tem sido uma tradição estática”. Através de autoanálise e exames, o dispensacionalismo muitas vezes revisou a si mesmo, e assim como ocorreu com outros sistemas teológicos, o dispensacionalismo viu mudanças e desenvolvimentos. Dessarte, atualmente podemos destacar quatro corretes/variações dentro do Dispensacionalismo, sendo elas:

Dispensacionalismo Clássico/Tradicional: J. N. Darby, Scofield, Lewis Sperry Chaffer 

Dispensacionalismo Revisado/Modificado: John Walvoord, Dwight Pentecost, Charles Ryrie, Charles Feinberg 

Dispensacionalimo Integrativo: Michael Vlach

Dispensacionalismo Progressivo: Craig Blaising, Darrel Bock, Robert L. Saucy





 

Notas
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[1] “A preocupação primária do Dispensacionalismo é com a eclesiologia e escatologia, enfatizando a aplicação da hermenêutica histórico-gramatical a todas as passagens da Escritura contidas tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento. Faz necessário afirmar que é intrínseco ao Dispensacionalismo uma distinção entre Israel e a Igreja como também uma futura salvação e restauração da nação de Israel num futuro reino terreno sob o governo de Jesus Cristo; sendo, portanto, o Messias, a base para um reino mundial que trará bênçãos a todas as nações” https://lucasamaciel.blogspot.com/2020/08/mitos-sobre-o-dispensacionalismo-part-1.html



Dedicatória:

Dedico todo o conteúdo deste "Artigo" ao meu caro amigo e irmão em Cristo, Melk Damaceno. Ao me perguntar sobre a origem do dispensacionalismo, criou-se em mim o desejo de esvrever sobre o assunto.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Uma Justificação Cristã da Filosofia (Part 1)


A Filosofia, desde os primórdios da Igreja primitiva, sempre exerceu um papel crucial na educação dos crentes e na proclamação de uma cosmovisão cristã em geral e do evangelho em particular. O Estudo da Filosofia foi considerado de fundamental importância à saúde, a vida cristã e a vitalidade das primeiras universidades na Europa, que eram, é claro, cristãs. E nos dias de hoje a filosofia continua - e deve continuar - a ocupar posição de proeminência na vida Cristã. Levando em consideração tais fatos, Willian Lane Craig, na sua obra ‘Filosofia e Cosmovisão Cristã’, lista sete razões “para que a filosofia seja crucial à estrutura, currículos e missão da universidade cristã e para o desenvolvimento de uma vida religiosa consistente”


A Filosofia e a sua relação com a apologética 


O objetivo da apologética é “estabelecer uma defesa plausível do teísmo cristão em face das objeções que lhe são apresentadas, oferecendo evidências positivas a seu favor”. Em 1Pe 3.15, consta o seguinte: “[...] estejam sempre preparados para responder a qualquer que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês”. Tal passagem é uma ordenança para que nos ocupemos da apologética (v. Jd 3). E a Filosofia auxilia justamente a principal tarefa da apologética. No Antigo Testamento, os profetas se utilizaram constantemente de vários argumentos sobre a natureza do mundo para justificar a religião de Israel. Por exemplo:

  1.  Eles Ridicularizavam os ídolos pagãos por conta de sua fragilidade e insignificância
  2.  Os profetas frequentemente recorriam aos princípios gerais do raciocínio moral para a criticar a imoralidade das nações pagas 

No primeiro exemplo, os profetas procuravam realçar que o mundo era muito grande para ter sido feito por algo tão pequeno. Conforme Willian Lane Craig Comenta: “Argumentos como esse admitem uma posição filosófica sobre a natureza da causalidade; por exemplo, que um efeito (o mundo) não pode advir de algo menos poderoso do que ele próprio (o ídolo). No segundo exemplo, “argumentos como esse utilizam a lei moral natural e os princípios filosóficos gerais do raciocínio moral. 

Da mesma forma, no Novo Testamento, os apóstolos fizeram uso da argumentação e raciocínio filosófico para proclamar Cristo aos incrédulos (Ex: At 17.2-4, 17-31; 18.4; 19.8). Fica evidente, portanto, que tal prática se assemelhava aos profetas do Antigo Testamento. Willian Lane Craig conclui escrevendo: "A filosofia ajuda o indivíduo expondo argumentos sobre a existência de Deus, esclarecendo e defendendo uma concepção abrangente do que é a existência de algo, até mesmo de entidades não-físicas excluídas da dimensão espaço-temporal como, por exemplo, Deus, anjos e, talvez, almas desencarnadas”. Ele também observa que mesmo “Quando uma objeção contra o cristianismo parte de alguma disciplina de estudo, tal objeção quase sempre envolve o uso da filosofia”.


A filosofia e a Contestação 


Se por um lado a apologética envolve a defesa do teísmo cristão, a contestação tem como objetivo criticar e refutar as cosmovisões alternativas de mundo. A filosofia auxilia a igreja na atividade polemista (Contestação); Craig Comenta:

"Por exemplo, no campo da inteligência artificial e da psicologia cognitiva há uma tendência em ver o ser humano em termos fisicalistas, quer dizer, como um sistema físico complexo. Apesar de alguns pensadores cristãos discordarem, o dualismo - A concepção que somos compostos tanto de uma entidade física quanto de uma entidade mental - é o princípio ensinado nas escrituras (2Co 5.1-8; Fp 1. 21-24). Parte da tarefa de um crente trabalhando nas áreas de Inteligência Artificial ou da psicologia cognitiva é desenvolver a crítica sobre a concepção puramente fisicalista do ser humano, e essa tarefa inclui questões relacionadas à filosofia da mente"[1].


A Filosofia e a Imagem de Deus 


O nosso Deus é um ser Racional, e o ser humano possui a mesma característica. Algo que é entendido por parte da maioria dos teólogos é que a imagem de Deus inclui a habilidade em se ocupar do raciocínio abstrato, especialmente nas áreas relacionadas às questões éticas, religiosas e filosóficas[2]. E, Pelo fato do homem ser racional, lhe é ordenado amar a Deus de todo o seu entendimento (Mt 22.37). Sabendo que a Filosofia assim como a religião, são disciplinas que abordam questões essenciais acerca do âmago da existência, “então a reflexão filosófica a respeito de Deus, de sua revelação especial e geral faria parte do nosso modo de amá-lo e de refletir os seus pensamentos”. Por isso, “a filosofia é uma manifestação central da imagem de Deus em nós”.


A Filosofia e a sua relação com a Teologia Sistemática


A filosofia permeia toda a teologia sistemática e atua como sua serva, ajudando no esclarecimento e definição dos seus conceitos. Ressaltando este ponto, Craig escreve: “Os filósofos cooperam na explicação dos diferentes atributos de Deus, ao demonstrar que as doutrinas da trindade e da Encarnação não são contraditórias; ao esclarecer, também, a natureza da Liberdade humana e assim por diante”. Não apenas isso, a filosofia pode auxiliar a entender o que a bíblia nos ensina em várias áreas na qual não é explícita. O filosofo poderá ajudar e expor a luz bíblica sobre temas e questões não mencionadas de maneiras diretas e claras nas escrituras, “fornecendo categorias e análises conceituais que se ajustem à situação e preserve o teor e a substância do ensino bíblico”. O filosofo tem condições de adequadamente converter a linguagem e as doutrinas da bíblia para temas, como por exemplo: ética médica, eutanásia ativa/passiva, seleção genética, inseminação artificial etc.









Notas
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[1] Para uma introdução ao assunto recomendo a obra: "Ensaios Apologéticos; Um Estudo Para uma Cosmovisão Cristã". Ver, Cap 13.
[2] Apesar das dificuldades existentes relativo a definição exata do que significa e seria a expressão "Imagem de Deus" comum a todos os Teólogos. 


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Mitos Sobre o Dispensacionalismo (Part 3)


 

As "Setes" dispensações é sine qua non ao dispensacionalismo

 

Por Incrível que se possa imaginar, ou parecer estranho ao leitor, o dispensacionalismo não é primariamente sobre acreditar em dispensações, ou acreditar em “Sete” dispensações. Isso devido a dois fatores:

Em primeiro lugar, a crença em dispensações é comum a todos os cristãos. O termo grego οἰκονομία “oikonomia” significa: “Administração” e “mordomado”. Em relação a Deus se refere à maneira como ele trabalha e atua com sua criação numa determinada era da história (Ef 1:10). A expressão grega diz respeito “a maneira como o responsável pela manutenção de uma casa dirige as pessoas e assuntos sob sua autoridade”. Consequentemente, como realça Michal Vlach, “Quem não reconhece que a era atual é diferente do novo céu e da nova terra por vir?”. Por ser comum aos cristãos, e por diversos teólogos antes do dispensacionalismo terem enfatizado várias dispensações nos planos de Deus, a crença em dispensações não pode ser uma característica distintiva do dispensacionalismo. Obviamente dispensacionalistas se tornaram famosos por apresentar complexos gráficos que mostravam e especificavam em detalhes os “propósitos de Deus na História”, como por exemplo, Clarence Larkin; “Isso ocorreu tantas vezes que a ideia de “gráficos” muitas vezes acompanha o título “dispensacionalismo” na mente de muitos”, não obstante, como Vlach frisa, “os dispensacionalistas não foram os primeiros a inventar os mapas das dispensações. Vários teólogos mapearam as várias atuações de Deus na história”. Isto posto, por conseguinte, o dispensacionalismo não trata do reconhecimento da palavra grega “οἰκονομία”. Vlach escreve:

“Em última análise, qual estudioso erudito que não acredita que “oikonomia” é um termo bíblico? Reconhecer a palavra “oikonomia” não torna uma pessoa dispensacionalista, nem a definição desse termo nos revela a essência do dispensacionalismo” (Dispensacionalismo, Crenças essenciais e mitos comuns; pag, 88).

Por essa razão Feinberg, na sua obra, “Continuidade e Descontinuidade”, salienta que é um grande erro acreditar que o termo “dispensação” e o ensino “sobre as diferentes ordens da administração divina” surgiu apenas no pensamento dispensacionalista; como também é um outro erro acreditar que o termo “aliança” explica a essência da teologia da aliança, pois assim também não ocorre no dispensacionalismo: “definir o termo ‘dispensação’ não define mais a essência do dispensacionalismo”. 

Em segundo lugar, tradicionalmente o dispensacionalismo tem sido vinculado à crença em “sete” dispensações; Scofield foi quem popularizou tal crença por meio da sua Bíblia de Estudo Scofield. No entanto, outros, são adeptos de quatro[1], oito dispensações, ou outro número qualquer. Portanto, Vlach comenta: “Eu não acredito que é necessário sustentar sete dispensações para ser um verdadeiro dispensacionalista.  Feiberg está correto quando afirma: “o número de dispensações não está no centro do sistema”. Ele conclui ratificando:

"O Estudo das dispensações é um esforço digno, mas eu não acredito que as questões sobre a quantidade de dispensações que existem e como cada uma delas deve ser denominada estão no coração do sistema dispensacionalista".

Curiosamente é digno de nota que autores como Charles Ryrie, Jhon Feinberg, Craig Blaissing e Darrell Bock que se preocuparam por meio dos seus escritos em realçar características definidoras e essenciais ao dispensacionalismo, jamais fizeram menção a ideia de que a crença em “Sete” dispensações fosse algo que estivesse no âmago do Dispensacionalismo[2].

 

As Crenças Básicas que estão no centro do Sistema Dispensacionalista 


Para Michael Vlach, um dos principais proponente do dispensacionalismo, seis crenças básicas estão  no centro de tal sistema, sendo elas:

1: O significado primário de qualquer passagem Bíblica é encontrado na própria passagem. O Novo Testamento não reinterpreta ou transcende as passagens do Antigo Testamento de modo a sobrepor ou cancelar a intenção autoral original dos escritores do Antigo Testamento;

2: Os tipos existem, mas Israel não é um tipo inferior que é suplantado pela igreja;

3: Israel e a Igreja são distintos entre si, assim, a Igreja não pode, por direito, ser identificada como novo/verdadeiro Israel;

4: A unidade espiritual na salvação entre Judeus e Gentios é compatível com o futuro papel funcional de Israel Como uma nação;

5: A nação de Israel será tanto salva como restaurada com um papel singular e funcional em um futuro reino milenar sobre a terra

6: Existem vários sentidos para "semente de Abraão", e assim, a identificação da Igreja como "semente de Abraão" não cancela as promessas de Deus para os crentes Judeus "semente de Abraão" (Dispensacionalismo, Crenças essenciais e mitos comuns; pag, 144).

 




  

Notas

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[1] Vlach entende que 4 dispensações são claramente identificáveis, sendo elas: (1) Adão até Moisés; (2) Moisés até Cristo; (3) A primeira vinda de Cristo até a sua Segunda Vinda de Cristo; (4) O Reino de Jesus após a sua segunda vinda. Convém salientar que independentemente de quantas dispensações for defendida por um dispensacionalista, a salvação sempre ocorrerá unicamente pela graça, por meio da fé.

[2] Pretendo escrever uma série de artigos enfatizando as características essenciais do dispensacionalismo. Cf. a seguir.