Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade? (V. 19)
Uma
outra objeção, que poderia ser lançada ao seu argumento anterior, é antecipada
por Paulo “De que se queixa ele ainda?
Pois quem jamais resistiu à sua vontade” (V: 19). Essa objeção procuraria
enfatizar que se Deus ele endurece a quem quer, não há culpa naqueles que são
endurecidos pois isso faz parte da sua vontade; ou seja, Deus não pode justamente
encontrar culpa naqueles que são endurecidos por Sua própria vontade onipotente”
[1]. Conforme frisa Armínio: Assim,
existe uma contínua proposição dessa espécie – Se ninguém pode resistir à
vontade de Deus, então Ele não pode justamente encontrar culpa naqueles a quem
Ele endurece de acordo com aquela vontade [2].
Armínio procurando estabelecer uma base previa para a resposta de Paulo a essa
objeção, ele discorre sobre a elucidação de duas questões extremamente
importantes; em primeiro lugar, quem são aqueles que em que Deus pode encontrar
culpa com Justiça? E em segundo lugar, Se, e de que maneira, quem são
endurecidos pela vontade onipotente de Deus podem ser considerados isentos daqueles
que se encontram culpa?.
Procurando
esclarecer a primeira questão, Armínio deixa claro que apenas e exclusivamente
devido ao pecado Deus poderá encontrar culpa com Justiça, assim ele escreve: “A
causa adequada da ira divina, e que, por conta da qual Deus pode censurar com
justiça a qualquer um, é o pecado”[3].
Entretanto, o pecado precisa se correlacionar com alguma Lei vigente, e não
apenas isso, a Lei precisa ser justa. Se uma lei não é justa de hipótese alguma
poderá ser imputado algum pecado a sua violação/transgressão. Segundo Armínio,
para uma lei ser justa necessariamente requer dela duas condições; ela precisa
ser promulgada por alguém que possua autoridade e, que seja possível a
realização e o cumprimento da mesma – incluindo nesse segundo aspecto a
inexistência de qualquer decreto impeditivo/interveniente que impossibilite de
realiza-la. Isto posto, Armínio deixa estabelecido que o pecado é algo
necessariamente voluntário:
“O
pecado é uma transgressão voluntária da lei”, que o pecador, uma vez que poderia
evitá-lo (eu falo agora do ato), o comete, de sua própria culpa. Por conta de
um pecado deste tipo, e a um pecador deste tipo, Deus pode repreender com
justiça. Se esta condição for removida, Deus não poderá repreender com justiça um
homem por causa do pecado, e, na verdade, o homem [nesta condição] não pode
cometer pecado”[4].
Portanto,
segundo Armínio, estes são aqueles que nos quais Deus pode encontrar culpa com
Justiça. Concernente a segunda questão: “Se,
e de que maneira, quem são endurecidos pela vontade onipotente de Deus podem
ser considerados isentos daqueles que se encontram culpa?”, Armínio ressalta
que a onipotência – de Deus – “Não acompanha
a vontade, considerada em todos os aspectos, pois Deus quer que Sua lei seja
obedecida por todos, o que nem sempre é feito; como também, em Deus não há duas
vontades mutualmente contraditórias[5]
“uma das quais deseja que a sua lei deve ser obedecida por todos, e a outra,
que não deve ser obedecida”. Levando em consideração tais pontos Armínio ele
afirma que segundo as Escrituras e conforme salientando anteriormente:
“Nada é mais comum na
Escritura, do que [o fato de que] os pecadores, ao perseverarem em seus pecados
contra a longanimidade de Deus, que os convida ao arrependimento, são aqueles a
quem Deus quer endurecer”[6].
Assim
sendo, se Deus move a vontade do homem ao endurecimento e o impulsiona a tal
estado isso é suficiente para isenta-lo da Justa ira de Deus, ou seja, “se ali
existir qualquer força de impulso divino, que seja seguida pela inevitável necessidade
de fazer aquilo para o qual ele [o homem] é movido” ao homem não poderá ser
atribuída a culpa pela transgressão da Lei. Por outro lado, se ele comente o
que conforme a vontade e desígnios de Deus merece o Endurecimento do livre-arbítrio,
ele está sujeito a culpa e é digno da ira “mesmo se puder ser endurecido por
aquela vontade que não pode ser resistida. Pois, resistindo, e isso livremente,
a vontade divina, revelada na palavra, que pode ser resistida, ele é trazido
para aquela necessidade do decreto divino, também revelado na palavra, que não
pode ser resistido e, assim, a vontade de Deus é feita com relação a ele, por
quem a vontade de Deus não é feita”[7].
Para refutar a objeção
dos Judeus, Paulo se utiliza de um outro exemplo, para mais uma vez, e de forma
inequívoca, estabelecer a Justiça de Deus no que diz respeito a sua rejeição
aos descendentes físicos de Abraão. Comentando sobre a refutação de Paulo a
objeção supracitada, Armínio enaltece o fato que Paulo não procurou em nenhum
momento respostas evasivas, “de modo que ele não pudesse refutar a própria
objeção”, muito menos, evolveu o assunto com tamanhas dificuldades “para que
ele pudesse coagir e restringir o objetor, aterrorizado pela dificuldade do
assunto”, pelo contrário, “mas ele mais apropriadamente e efetivamente refutou
toda objeção. Eu me atreveria a afirmar que em toda a Escritura nenhuma objeção
é mais suficientemente
Refutada”[8].
Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? (V. 20)
Neste
momento o Apóstolo começar de fato a responder a possível objeção que poderia
ser levanta pelo Judeus. Paulo, aparentemente, no versículo de número 20, faz
referência a dois trechos de Isaías, sendo eles: Isaias 29:16 “Que perversidade a vossa! Como se o oleiro
fosse igual ao barro, e a obra dissesse do seu artífice: Ele não me fez; e a
coisa feita dissesse do seu oleiro: Ele nada sabe” e Isaias 45:9 “Ai
daquele que contende com o seu Criador! E não passa de um caco de barro entre
outros cacos. Acaso, dirá o barro ao que lhe dá forma: Que fazes? Ou: A tua
obra não tem alça”. Segundo Daniel Gouvêa: “Na passagem de Isaías 45:9, o
profeta está demonstrando como tema central do capítulo a “futilidade de
qualquer oposição ao plano de Deus” (e isso estava sendo feito pelo “oponente”
de Paulo em Rm 9). Isaías 29:16, que é de fato a âncora de Paulo para o
versículo 21, fala acerca do Juízo de Deus contra o povo de Israel por não ter confiado em Deus, mas, antes, ter
confiado nos recursos políticos e nas riquezas provindas das nações pagãs. Por
isso é que o Senhor diz a Isaías 29:16 “Que
perversidade a vossa! Como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra dissesse
do seu artífice: Ele não me fez; e a coisa feita dissesse do seu oleiro: Ele
nada sabe”[9].
Sobre
o motivo e aplicação que fez Paulo fazer menção ao A.T Daniel Gouvêa comenta:
“É pertinente Paulo
usar essas menções do Antigo Testamento aqui, pois assim como em Isaías os
Israelitas estavam dependendo de seus próprios esforços e não dos meios de Deus
para salvação, em Romanos 9 o mesmo acontece, pois, os Israelitas estavam
dependendo de seus próprios méritos de descendência abraâmica para salvação e
não do único meio que Deus escolheu para salvar, isto é: a justificação pela fé em Cristo. Portanto, nessas condições seria
fútil aos judeus dos tempos de Paulo, assim como foi aos do tempo de Isaías, se
opor ao Juízo de Deus”[10].
Portanto, Segundo
Armínio, “A resposta do apóstolo é dupla. Por um lado, reprovando o objetor em
razão de sua própria indignidade e aquela da objeção; por outro lado, refutando
a objeção”. Armínio esboça que a natureza da reprovação da objeção levantada pelos Judeus é triplice “a reprovação, sua razão e a prova de sua razão”.
A Reprovação: Na forma de pergunta, a reprovação é
apresentada com as seguintes palavras: Quem
és tu, ó homem, para discutires com Deus?!.
Conforme Daniel Gouvêa,
muitos estudiosos entendem que Paulo ao fazer uso da expressão (ó homem), “procurava demonstrar um
deliberado contraste entre o homem e Deus. Demonstrando, desta forma, que esse
tipo de objeção é baseado na perspectiva humana”[11]. Armínio também compreende assim ao resumir da seguinte
maneira a intenção das palavras de Paulo:
“Isto
é, considere, ó homem, quem és tu e quem é Deus, e compreenderás que tu és
indigno de responder a Deus desta maneira. Difamar tão excelente doutrina de
modo tal a acusar a ira de Deus de ser injusta e desculpar inteiramente o
homem, foi resistir a Deus em Sua própria face e se opor mais diretamente a Ele”[12].
Notamos
claramente a indignação do Apostolo Paulo ao “homem” que levantou tal objeção,
ao ponto de severamente repreendê-lo.
A Razão: Da seguinte maneira a
razão é emitida pelo Apostolo Paulo: Porventura,
pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?
Paulo
faz questão de comparar Deus e o homem. Se por um lado o homem é o objeto
formado, Deus é quem formou tal objeto. Devido a essa razão, é leviano,
afrontoso e completamente reprovável ao homem responder Deus assim.
“Nesta
comparação, o apóstolo dá a razão pela qual não é adequado para o homem, como
“a coisa formada”, responder assim a Deus, como para “Aquele que o formou”, como
se ele dissesse, “pois não é permitido à coisa formada dizer Àquele que a formou,
‘Por que me fizeste assim?’. Assim também, não é permitido a ti, ó homem,
responder a Deus desta forma. Pois tu nada mais és do que um barro e um verme
da terra, uma coisa feita por Deus, mas Deus é Aquele que te fez e te formou”[13].
Prova de sua razão:
Portanto,
assim como oleiro tem direto e poder sobre sobre o vaso, Deus possui todo direito
e poder sobre o que ele formou, nesse caso, sobre aquilo de que ele formou. Não
apenas isso, a comparação realizada por Paulo procura estabelecer que Deus tem
o direito sobre a sua própria criatura, assim como tem o oleiro. Armínio Resume
estes pontos escrevendo assim:
“Se
o oleiro tem poder para, da mesma massa, fazer um vaso para honra e outro para
desonra, não é para ti, a coisa formada, dizer para Aquele que te formou: Por
que me fizeste assim? – Mas o oleiro tem esse poder; – Portanto, etc”. Em
segundo lugar: “Se o oleiro tem esse poder sobre o barro, então Deus também tem
o mesmo poder sobre os homens, ou melhor, sobre aquilo do qual Ele estava
prestes a formar ou fazer os homens; – Mas o primeiro é verdadeiro; – Portanto,
o último também é verdadeiro”. Por isso, também “não é para o homem replicar
contra Deus: por que me fizeste assim?”, ou fazer esta objeção em razão da qual
o apóstolo reprova e repreende o objetor”[14].
Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra? (V. 21)
O
versículo de número 20 é uma explicação para a comparação que Paulo usa no seu
argumento contrário a objeção dos Judeus. Em primeiro lugar é importante
destacarmos que era muito comum dentre os Judeus a figura de vasos para honra –
para fins nobres – e vasos para desonra – fim desprezíveis. Em segundo lugar,
sem dúvidas o barro representa Israel. Portanto, Paulo ao se utilizar deste
exemplo pretendia fazer com que os Judeus compreendessem que ao longo da
História Deus sempre possuiu vaso de honra (Crentes) e vasos de desonra (Incrédulos)
dentre o povo de Israel, ou seja, entre os Judeus não haviam somente utensílios
de honra, mas os de desonra também. A expressão honra (τιμὴν) e desonra (ἀτιμίαν) aplicada a utensílios,
fora utilizada por Paulo em 2Tm 2:20: “Ora, numa grande casa não há somente
utensílios (Gr: vasos, ferramentas,
domesticas, utensílios caseiros) de ouro e de prata; há também de madeira e de
barro. Alguns, para honra; outros, porém para desonra”. Entretanto, de acordo
com o contexto posterior (V.21): “Assim, pois, se alguém a si mesmo se purificar destes erros, será utensílio para
honra, santificado e útil ao seu possuidor, estando preparando para toda boa
obra”. Isso significar dizer que os utensílios de desonra que consta no (V.20)
poderiam vim a ser utilizados para fins de honra. Paulo fazendo referência aos
vasos para honra e para desonra em Rm 9 tinha em mente a mesma ideia expressada
nos versículos 20-21 de 2Tm. Além do mais, como destaca muito bem Daniel
Gouvêa:
“Vale lembrar ainda que tanto Paulo como os
Judeus certamente estavam familiarizados com o texto de Jeremias 18, em que a
figura do oleiro com os vasos é também usada em referência a Israel. Nesta
passagem, observamos que na visita de Jeremias a casa do oleiro, o vaso
estraga-se em suas mãos (v.4), e o problema obviamente não está no oleiro, mas
no barro. O oleiro reutilizou o barro como bem lhe apareceu, não jogando fora e
pegando outro (v.4). Assim, o senhor pode remodelar seu povo de acordo com o
seu comportamento (vs 7-10). Contudo, seu povo espantosamente rejeitou ser
“remodelado” por Deus mantendo uma atitude rebelde (11-16). Consequentemente o
povo seria punido por tal rebeldia (v.17)”[15].
Portanto,
Paulo usa a metáfora do oleiro e dos vasos para deixar claro que ninguém pode se
queixar de Deus, retirar a sua culpa e subsequentemente atribui-la a Deus pelo
destino que lhes reserva. “Quando essa metáfora é usada em Jeremias 18, ela se
refere à habilidade do oleiro de mudar sua ideia inicial sobre a massa de barro
especifica, dependendo de como o barro se comporta. Não se afirma que o modo do
barro se comportar depende de Deus, de fazê-lo comporta-se assim (I. Howard
Marshall, Teologia do Novo Testamento, p. 292). Armínio entende que na passagem supracitada, três coisas são consideras. Sendo duas
delas, de forma explícita e uma de forma implícita, mas que se encontra entre
as duas explícitas. Ele escreve:
“Primeiro,
é necessário que um homem deva existir e seja um vaso. Segundo, é necessário
que antes que ele possa ser um vaso de ira ou de misericórdia, ele deva ser um vaso
de pecado, isto é, um pecador. Terceiro, que ele deve ser um vaso de ira ou de
misericórdia”[16].
Paulo
ao utilizar a expressão vaso, segundo Armínio, expressa a ideia que Deus não
apenas criou o homem, mas ele o criou para um determinado fim; este fim seria a
glória de Deus, algo que é expressando nas Escrituras; isso significar dizer
que “Deus fez o homem para a Sua própria glória, isto é, não que Ele devesse
receber glória do homem, mas para que Ele pudesse demonstrar Sua própria glória
de uma forma muito mais distinta, pelo homem, do que por Suas outras criaturas”[17]. A demonstração da glória de Deus manifestaria não apenas a bondade de
Deus, mas também a sua justiça, sabedoria e poderio. Devido a sua bondade ele
comunicaria a si mesmo; a justiça prescreveria a regra para essa comunicação; a
sabedoria, como ela poderia e adequadamente possivelmente ser feita; e seu
poder, que Ele devesse ser capaz, de fato, de comunicar a si mesmo. Portanto, o
homem – e nele o resto da humanidade – seria um vaso – instrumentos adequados –
para demonstrar a justa bondade de Deus, ao abençoa-lo se ele vivesse em
justiça, como também a sua ira, ao puni-lo se caso transgredisse os seus
mandamentos. Armínio resume seu entendimento quando escreve:
“A
partir disso, torna-se evidente qual é o verdadeiro sentido daquelas coisas que
são aqui propostas pelo apóstolo, a saber, que Deus tem o poder de fazer os homens
da matéria não formada e de estabelecer um decreto que lhes diz respeito, de pura
escolha e prazer de Sua vontade, sancionada por certas condições, de acordo com
as quais Ele faz alguns vasos para desonra e outros vasos para honra; e,
portanto, o homem não tem nenhuma razão justa para replicar contra Deus porque
Ele tem, por Sua vontade irresistível, feito a ele para ser endurecido, uma vez
que a persistência no pecado intervém entre aquela determinação da vontade e o
real endurecimento; por conta da qual obstinação, Deus deseja de acordo com o
mesmo prazer de Sua vontade, endurecer o homem por sua vontade irresistível. Se
alguém disser que Deus tem poder absolutamente ou incondicionalmente para
tornar um homem um vaso para desonra e ira, ele fará a maior injustiça à Divindade,
e irá contradizer a clara declaração da Escritura”[18].
Armínio
faz questão de frisar por diversas vezes que o homem pecou, e fez-se um vaso
mau, isto é, um pecador, ademais “com nenhuma concordância da cooperação divina
para esse resultado[...]”. Outra coisa que é importante frisarmos, trata-se
sobre a execução do decreto, conforme a vontade-livre e irresistível de Deus,
que corresponde aos vasos da Ira e endurecidos. Segundo a Armínio a execução
desse decreto não toma lugar até depois, que o homem, o tendo-se tornado
pecador, tornou a si mesmo digno da ira.
Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? (V. 22-24)
Nenhuma
outra explicação poderá ser dada a comparação/exemplo que o apostolo se
utilizou, a não ser a que ele declara nos versículos 22-24. Paulo procura enfatizar que os endurecidos são objeto da ira divina – a expressão “esses
vasos de ira [...]” encontra-se no genitivo de destino – ou seja, Deus
direciona a sua ira aqueles que já são, de fato, vasos de ira. Não é o
endurecimento do homem a causa da ira de Deus, mas a ira de Deus é a causa desse
endurecimento. Por isso, os judeus não poderiam encontrar injustiça em Deus,
nem tão pouco poderiam cogitar a ideia de que nos endurecidos não havia culpa,
pois, conforme Armínio salienta: “Ele não pode endurecê-los, a menos que eles
já tenham, por sua própria culpa, se tornado vasos da mais justa ira de Deus. A
Escritura toda ensina que o endurecimento é o efeito e o sinal da ira divina.
Por isso, a pergunta “Deus pode ficar irado com os endurecidos?” – é tola”[19]; A expressão “preparados para destruição” – se interpretada corretamente – ressalta
justamente isso [20].
Voz Média ou Passiva?
O
verbo ’Preparados’ (Gr: κατηρτισμένα) se
interpretado na voz média, expressa a ideia de que os vasos que são objetos da
Ira de Deus, prepararam-se a si mesmo para destruição (tendo preparados a si
mesmo para destruição), em detrimento na voz passiva, que expressaria a ideia
de que Deus os prepara para destruição (tendo sidos preparados por Deus para destruição). Primeiro, é importante ressaltarmos que
vários sínodos condenaram como heréticos algumas interpretações
“contemporâneas” baseadas na perícope 22 de Romanos 9. Carlos A. Vailatti
comenta: (1) A noção de que os perdidos se perdem pela vontade de Deus e de que
Deus destina uns à morte e predestina outros à vida foi condenada pelo Sínodo
de Arles (473 d.C.); (2) A crença de que algumas pessoas tenham sido
predestinadas ao mal foi anatematizada pelo II Sínodo de Orange (529 d.C.); (3)
A doutrina da dupla predestinação, defendida por Gottschalk de Orbais (808-867
d.C.), foi repudiada pelos Sínodos de Mainz (848 d.C.) e de Quiercy (849 d.C.);
(4) Finalmente, a ideia de que Deus predestinou a malícia (o mal) nos seres
humanos foi rechaçada pelo Sínodo de Valença (855 d.C.). Os ensinamentos
alistados nos itens 1 a 3, em especial, talvez com algumas ligeiras variações,
são muito semelhantes a determinadas doutrinas ensinadas em nossos dias”; Em
segundo lugar, no período dos pais da igreja, a interpretação comum era o verbo
(katertismena)
na voz média, Vailatti escreve: “No período dos pais da igreja, os “vasos de
ira” de Romanos 9:22 foram identificados com “os não crentes” que “não quiseram
arrepender-se” (Ambrosiastro – 366-384 d.C.?); aqueles que se tornaram tais
vasos “por sua própria vontade” (Crisóstomo – 347-407 d.C.); aqueles que
receberam “os merecimentos da impiedade anterior e oculta” (Agostinho – 354-430
d.C.); “os que têm a vontade pessoal de viver como vasos de ira” (Constâncio –
405 d.C.?) e, finalmente, aqueles que “abundando em seus próprios pecados, se
converteram em vasos dignos de ira, preparados por si mesmos para a sua perdição”
(Pelágio – 354-420 d.C.)”. Aparentemente, esse era o mesmo tipo de entendimento
de Irineu de Lião (135-202 d.C.) e Basílio de Cesareia (330-379) ao escreverem,
respectivamente:
“Ofereça
a Ele o seu coração em um estado suave e tratável, e preserve a forma pela qual
o Criador te modelou” e “se você, sendo obstinadamente endurecido, rejeitar a
operação de Sua habilidade, [...] perdeste, ao mesmo tempo, sua obra e vida”.
“Quando
o apóstolo fala de ‘vasos de ira preparados para a destruição’ (Rm 9:22), não
imaginemos que exista uma espécie de preparação perversa do faraó, pois então
seria mais justo transferir a causalidade para aquele que o preparou. Em vez
disso, quando você ouve ‘vaso’, entenda que cada um de nós foi criado para algo
útil. É como em uma grande casa, onde alguns vasos são de ouro, alguns de
prata, alguns de barro e alguns de madeira (2 Tm 2:20). A livre escolha de cada
um fornece a semelhança no material”.
E
por fim, mas não menos importante, há um grande número de Autores que defendem
o verbo ‘preparados’ na voz média. Vailatti escreve:
Os
autores Arndt e Gingrich, em sua famosa obra A Greek-English Lexicon of the New
Testament and Other Early Christian Literature (uma obra de referência
internacional no estudo do grego do NT) dizem que o verbo katertismena de
Romanos 9:22 pode estar na voz média, significando, portanto, “tendo preparado
a si mesmos para a destruição”. O Dicionário Vine, de modo semelhante, ao
comentar a respeito do significado do verbo grego katartizo, em Romanos 9:22,
declara que “aqui a voz média significa que eles mesmos ‘se prepararam’ para a
destruição”. Wiersbe, em seu comentário sobre o sentido de katertismena,
assevera, de modo análogo, que “o verbo está naquilo que os gramáticos chamam
de voz média, tornando-o um verbo de ação reflexiva. Então, deve-se ler:
‘prepararam a si mesmos para a destruição’”. Kaiser, após ponderar sobre qual
seria a tradução mais adequada de katertismena em Romanos 9:22 (se na voz
passiva, se na voz média), conclui que “a ideia reflexiva da voz média é a
escolha correta aqui”. Hobbs, entendendo o referido verbo na voz média, comenta
que “Deus mostrou muita paciência para com aqueles que, através do pecado e de
corações endurecidos, fizeram-se vasos de ira preparados para a destruição”.
Ironside, ao aludir aos vasos de ira, de Romanos 9:22, explica que “eles
deliberadamente se prepararam para a perdição”. Dunn lembra-nos que “o ‘ser
preparado’ para a destruição não foi inteiramente ou unicamente a ação do
divino oleiro. Como ele [Paulo] argumentou tão claramente em [Romanos] 1:18-32,
a ira de Deus vem sobre a rebelião do homem, sua rebelião precisamente contra o
seu papel de criatura”. De acordo com Franzmann, “Paulo [...] não disse que
Deus cria os homens para serem vasos de Sua ira, que Ele condena os homens à
ira desde a eternidade. [...] A ira de Deus não é um movimento primordial de
Sua vontade, em eterno equilíbrio com Seu amor; a ira é a reação de Deus à
culpa dos homens”. Hendriksen, admitindo a possibilidade de que katertismena
esteja na voz média, declara que “aqui, no versículo 22, as próprias pessoas –
em cooperação com Satanás – foram os agentes ativos” de sua preparação para a
destruição. Por fim, Stott, ponderando sobre o significado de Romanos 9:22, diz
que “ele [Paulo] descreve os objetos ou vasos da ira de Deus simplesmente como
preparados para destruição, prontos e maduros para isso, sem indicar, contudo,
o agente responsável por tal preparação. Deus certamente nunca ‘preparou’
ninguém para destruição; não seria o caso que estes, em sua própria opção por
praticar o mal, tenham preparado a si mesmos para tal?”. Estas obras, entre
outras que poderiam ser mencionadas, apontam claramente para a plausibilidade
da tradução de katertismena na voz média, perspectiva esta que parece ser
condizente com o contexto imediato e amplo de Romanos 9.”[21].
Assim
sendo, e conforme Armínio ressalta, o modo de endurecimento é a “paciência e
brandura” (Lat. patientiam et mansuetudinem, “paciência e delicadeza”), e não a
ação onipotente de Deus que não pode ser resistida. Isso é expressado nas
palavras “suportou com longanimidade os vasos de ira”. Isso corrobora com o que
já mencionamos anteriormente nas “considerações quanto ao endurecimento de
faraó” (pág 30), pois, Deus suportou com grande paciência não apenas Faraó, mas
toda a nação do Egito. Da mesma forma Deus suportou pacientemente a nação de
Israel se arrepender dos seus pecados ao longo de toda a sua História, mas isso
não aconteceu (Lucas 13:34), discorrendo assim vários juízos da parte de Deus e
o derramamento de sua ira à nação de Israel, ou seja, Deus o entregou à
destruição e ao exílio. Portanto, Paulo, além de se utilizar do termo suportou (Gr: Aturou, tolerou) acrescentou os termos, com muita (Gr: πολλή) longanimidade (Gr:μακροθυμία). Desejando enfatizar a incrível e inacreditável paciência de Deus para com os tais – os
vasos de ira). Não obstante, Armínio comenta:
“Não
é o decreto, pelo qual Deus determinou endurecer os vasos de ira, pertencente à
vontade que não pode ser resistida?”. Isso é realmente verdade. Mas uma coisa é
Deus usar o ato onipotente de Sua própria vontade para efetuar o endurecimento,
e outra coisa para Ele é determinar por essa vontade que Ele endurecerá os vasos
de ira. Pois, nesse caso, o exercício da vontade é atribuído ao decreto de endurecer
e não ao ato; entre os quais a diferença é tão grande que é possível que Deus
deva, por Sua vontade irresistível, fazer um decreto com relação ao endurecimento
dos vasos de ira por Sua paciência e longanimidade”[22].
Assim,
Paulo deixa estabelecido que Deus, de fato, decidiu manifestar não apenas a sua
ira, mas também o seu poder naqueles que são considerados vasos de ira
preparados para a destruição. A expressão “Deus querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder[...]” diz
respeito a clara vontade de Deus em demonstrar a sua ira. Esse desejo diz
respeito à espontaneidade da santidade divina e a ferocidade do todo poderoso
contra o pecado (Rm 2:5; Ap 19:15) e “isso faz sentido com o carácter de Deus,
o desejo de executar seu juízo santo. Deus deseja justamente manifestar a sua
ira santa contra o pecado e isso pode ser visto em toda a Bíblia, bem como ao
longo da carta aos Romanos”[23]. Armínio
comenta:
“e,
assim, eles são descritos [como aqueles] em quem Deus iria mostrar a Sua ira e
poder, de modo que todos eles pudessem abranger juntos, em si mesmos, as justas
causas da ira divina. Pois Ele não está irado com eles, a menos que eles já
tenham se tornado vasos de ira; nem Ele, quando, por seus próprios méritos,
eles foram preparados para a destruição, imediatamente, de acordo com o Seu próprio
direito, leva a cabo a Sua ira na sua destruição, mas Ele os suporta, com muita
longanimidade e paciência, convidando-os à penitência e esperando por seu
arrependimento; mas, quando, com um coração endurecido e não sabendo como se
arrepender, eles desprezam a longanimidade e a paciência de Deus, não é de se admirar
que mesmo a bondade mais misericordiosa de Deus não fosse capaz de contê-lo no
exercício da Sua ira, para que, quando a ira exigisse que a justiça devesse
prestar a ela seu próprio e mais alto direito, Ele não parecesse ignorá-la”[24].
É
importante frisarmos que a paciência de Deus possui uma finalidade de levar as
pessoas ao arrependimento (Rm 2:4; 2Pe 3:9), e levando em consideração o
contexto do capítulo 9[25], “os
presentes objetos da ira de Deus em Romanos 9 são os mesmos objetos de sua paciência
em Romanos 10:1-15; 11:25-32. Dessa forma, a destruição final mencionada em Romanos
9 é resultado da não crença na justiça de Deus revelada em Cristo”[26]. Entretanto, para aqueles que não
despreza a paciência como também a longanimidade de Deus, a estes Deus
demonstra as riquezas de sua glória (Rm 2:4 e 11:12), tornando-se assim, vasos
de misericórdia, e esses vasos não são apenas Judeus crentes em Cristo, mas
também os gentios.
Após
resumir toda a explicação da comparação de Paulo através de um outro Silogismo
de refutação[27], Armínio, encerra a
sua carta escrevendo: “Se alguém me mostrar que essas coisas não estão em
conformidade com o sentimento de Paulo, eu estarei pronto para dar a questão
por vencida; e, se alguém provar que elas são incompatíveis com a analogia da
fé, eu estarei pronto para reconhecer a falha e abandonar o erro”[28]. Segundo Vailatti, este último
parágrafo com o qual Armínio encerra a sua carta endereçada a Gellius Snecanus
é redigido na forma de um poema, que, segundo Nichols, ficaria assim: “Se algum
homem me mostrar Que eu com Paulo estou a discordar Com prontidão me absterei
De meu próprio sentido, e o seu reterei: Mas se, ainda, alguém mostrar Que na
fé um golpe mortal desferi Com profundo pesar meu pecado irei assumir / E
buscar meu erro reparar”. (Cf. NICHOLS, William. The Writings of James Arminius.
Apud: BANGS, Carl O. Armínio: Um Estudo da Reforma Holandesa. [Trad. Wellington
Carvalho Mariano]. São Paulo, Editora Reflexão, 2015, p.231).
[1] Vailatti,
Carlos Augusto; Jacó Armínio-Uma Análise de Romanos 9; pag, 64.
[2] Ibid.
pág, 64.
[3] Ibid.
pág, 65-66.
[4] (Lat. duae in Deo [...]
voluntates sibi invicem contrariae)
[5] Ibid.
pág, 68.
[6] Ibid.
pág, 72.
[7] Ibid.
pág, 74.
[8] Ibid.
pág, 75.
[9] Gouvêa,
Daniel; A Soberania de Deus na Justificação: Uma abordagem Bíblica, Exegética e
Teológica de Romanos 9; pág, 99-100.
[10] Ibid.
pág, 100.
[11] Ibid.
pág, 99.
[12] Vailatti,
Carlos Augusto; Jacó Armínio-Uma Análise de Romanos 9; pag, 76-77.
[13] Ibid.
pág, 77-78.
[14] Ibid.
pág, 79.
[15] Gouvêa,
Daniel; A Soberania de Deus na Justificação: Uma abordagem Bíblica, Exegética e
Teológica de Romanos 9; pág, 101.
[16] Vailatti,
Carlos Augusto; Jacó Armínio-Uma Análise de Romanos 9; pag, 86.
[17] Ibid.
pág, 87.
[18] Ibid.
pág, 95-97.
[19] Ibid.
pág, 104.
[20] Para Daniel Gouvêa, não
há problema em aceitar o verbo na voz passiva (Foram preparados por Deus). Ele escreve: “Encarar o verbo como voz
passiva parece ser o mais natural”.
Apesar das implicações que alguns calvinistas interpretam do versículo
22 em favor da dupla predestinação – sendo ela simétrica ou assimétrica – Daniel Gouvêa salienta “[...] outros, como, Harrison,
Hodge, Sheed, Morris e Murray, são mais reticentes. Ao referir-se aos vasos
preparados Murray, por exemplo, diz: “Não é necessário nem apropriado pensarmos
que toda a preparação mencionada no versículo 23 antecedeu a chamada
propriamente dita. A chamada divina seria antes o início do processo
preparatório”. Ainda Morris menciona: “Paulo está dizendo que Deus criou
pessoas, e que essas pessoas se tornaram pecadoras, e que Deus então lida com
esses pecadores”. (Gouvêa, Daniel; A Soberania
de Deus na Justificação: Uma abordagem Bíblica, Exegética e Teológica de
Romanos 9; pág, 105)
[21] Todas as citações
realizadas dos comentários de Vailatti foram retiradas do link: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1568972153259596&id=891083714381780,
(Um Estudo Sobre o Significado de Romanos 9:22;
Em Defesa da Voz Média). A leitura desse estudo e imprescindível, pois, além dos
argumentos supracitados, ele também passa a discorre sobre os motivos
gramaticas e contextuais que favorece a interpretação na voz média, além
de comentar as objeções de Daniel B. Wallace feitas em sua obra: “Gramática
Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento” a essa visão. Não inserir esse
conteúdo neste E-book para evitar alongar-me sobre o tema.
[22] Vailatti,
Carlos Augusto; Jacó Armínio-Uma Análise de Romanos 9; pag, 105-106.
[23] Gouvêa,
Daniel; A Soberania de Deus na Justificação: Uma abordagem Bíblica, Exegética e
Teológica de Romanos 9; pág, 103.
[24] Vailatti,
Carlos Augusto; Jacó Armínio-Uma Análise de Romanos 9; pag, 108-109.
[25] Paulo no capítulo 8 de Romanos,
após, no capítulo 7, ressaltar o quanto é frustrante a tentativa de observar e viver
pela lei, revela o poder da santificação que permite aos crentes em cristo,
desfrutarem do ministério do Espírito Santo, que dá segurança de vitória na
vida prática cristã. Paulo, de forma introdutória, apresenta isso no capitulo 6. “Diante de tamanho benefício declarado ao cristão no capítulo 8, os capítulos
9-11 tornam-se urgentes, pois como fica o povo judeu nessa questão, uma vez que
em sua maioria estavam rejeitando a mensagem do evangelho proclamado por Paulo
e se estribando no seus próprios méritos e descendência abrâamica? E se o povo Judeu,
que era o povo de Javé, estava sendo rejeitado, por que os cristãos não
haveriam de ser também?” (A Soberania de Deus na
Justificação: Uma abordagem Bíblica, Exegética e Teológica de Romanos 9; pág,
49-50). O
fato é, que, para uma melhor compreensão do capítulo 9 de Romanos, é necessário
a leitura dos capítulos 10-11, pois estes três capítulos estão unidos e a
partir deles, o apostolo Paulo se utiliza para defender que Deus é justo na
presente rejeição de Israel. Por isso Daniel Gouvêa escreve: “é de suma importância
relacionar o capítulo à luz de toda a epístola, bem como à luz dos capítulos 10
e 11, pois do contrário será obtida uma compreensão inteiramente não paulina do
texto” (Gouvêa, Daniel; A Soberania de Deus na Justificação: Uma abordagem
Bíblica, Exegética e Teológica de Romanos 9; pág, 13).
[26] A
Soberania de Deus na Justificação: Uma abordagem Bíblica, Exegética e Teológica
de Romanos 9; pág, 106.
[27] Armínio, por duas vezes,
afirma a beleza da retórica argumentativa de Paulo a objeção dos Judeus. E essa
beleza poderá ser vista e lida quando Armínio expõe por meio de silogismo todo
o argumento de Paulo em sua carta à Gellius Snecanus nas páginas 109-111
[28] Vailatti,
Carlos Augusto; Jacó Armínio-Uma Análise de Romanos 9; pag, 112.

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